A edição de VEJA publicada na semana de 29 de junho de 1994 — a última antes de a mais nova moeda, o real, entrar em circulação — apresentou uma reportagem especial de doze páginas sobre o assunto. O texto buscava, nos detalhes do cotidiano, os sinais que apontassem se o plano daria certo ou se seria apenas o próximo a fracassar, como tantos outros haviam sucumbido à dura realidade do país. Se tiver dinheiro na poupança, não saque agora, informava a publicação da época. Deixe para comprar dólar depois e, nos supermercados, espere para ver se os preços baixam, foram outras sugestões. “Este plano é tecnicamente muito melhor do que os outros”, disse o ex-ministro da Fazenda Mário Henrique Simonsen em entrevista às Páginas Amarelas da semana seguinte. A avaliação de Simonsen foi premonitória. O Plano Real, de fato, representou a mais bem-sucedida cruzada econômica da história do Brasil, um ponto de virada que exterminou a hiperinflação do período, trouxe estabilidade monetária e permitiu, com o passar dos anos, que milhões de brasileiros passassem a levar uma vida melhor.
O anúncio do Real disputou a audiência e a ansiedade dos brasileiros com a Copa do Mundo nos Estados Unidos, onde a seleção lutava para reconquistar o título após 24 anos de derrotas. Na seara monetária, o clima, desde os economistas e empresários até os trabalhadores e as donas de casa, era uma mistura de esperança com descrença, situada entre a promessa de um projeto maduro e as traumáticas frustrações das tentativas anteriores. Numa campanha de cinco vitórias, dois empates, uma prorrogação e uma angustiante decisão nos pênaltis, o tetracampeonato da seleção brasileira chegou, finalmente, em 17 de julho. No caso do Real, a vitória começou a ser construída em 1º de julho de 1994, quando a moeda estreou, e seus efeitos positivos são sentidos até hoje.
Às vésperas de completar trinta anos, o real é a moeda mais longeva de todas as oito que o Brasil teve desde o fim do mil-réis, em 1942. Quando entrou em circulação, a alta dos preços beirava os 50% ao mês. Ao fim de julho, tinha se reduzido a 6% e, um ano depois, a 2%. Por mais que manter a inflação na meta e ter juros baixos continuem a ser desafios atuais, não há nada que se compare ao ritmo frenético de ajustes diários de preços com que o Brasil convivia antes da chegada do real. Diversas séries econômicas nem sequer têm dados estruturados anteriores a 1994, como é o caso até mesmo do produto interno bruto. É como se uma parte inteira do país só tivesse começado a partir dali. “Precisávamos de um novo padrão monetário duradouro e saudável, e foi isso o que o Real fez”, diz Gustavo Franco, um dos titulares da equipe do governo Itamar Franco e de seu ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. “Mas o Real não encerra a história econômica do Brasil. Resolvemos um grande problema, mas muitos outros persistem”.
Fernando Henrique ocupava o cargo de ministro das Relações Exteriores quando foi convocado por Itamar para a Fazenda em maio de 1993 — seria o quarto titular da pasta em sete meses. Com ele, viriam Pedro Malan, colocado na presidência do Banco Central em setembro, e uma equipe de economistas notáveis que, além de Gustavo Franco, incluía André Lara Resende, Pérsio Arida, Edmar Bacha, Winston Fritsch e Murilo Portugal. A primeira grande missão do grupo era combater os aumentos galopantes dos preços. A segunda, fazer isso sem repetir os planos anteriores, fundados em congelamentos e confiscos que, como se sabe, falharam. “Era muito difícil ter controle de qualquer coisa que estávamos vendendo e até mesmo dos lucros”, afirma Carlos Correa, diretor-geral da Associação Paulista de Supermercados e que, há trinta anos, era gerente de compras em uma rede de varejo. “O real mudou tudo, permitiu que aumentássemos o sortimento e a variedade de produtos.”
A hiperinflação brasileira foi resultado de desastres cultivados por décadas. Começa com a máquina de imprimir dinheiro com que Juscelino Kubitschek fez Brasília, se estendeu com as correções automáticas criadas na ditadura militar e chegou à década de 1980 já tomando forma de avalanche. “A inflação é agora essencialmente inercial, isto é, os preços sobem hoje porque subiram ontem”, foi o diagnóstico de Lara Resende em um artigo escrito a quatro mãos com o colega Pérsio Arida em 1984. O famoso “Larida”, como o projeto da dupla ficou conhecido, já tinha sido rejeitado nas rodadas anteriores, mas acabaria resgatado como a base teórica do Plano Real. “Era uma ideia tão revolucionária que ninguém topou usar antes”, diz o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, que participou dos planos na Presidência de José Sarney.
A tese propunha indexar a moeda podre a uma referência fixa, paralela e com lastro próprio, numa espécie de taxa de câmbio imaginária. Foi o que, em 1994, virou a Unidade Real de Valor (URV), a moeda virtual que precificou o cruzeiro nos quatro meses de transição até o real. “O grande diferencial do plano é que ele não interveio nos contratos privados e teve uma preocupação muito grande de comunicação com a sociedade”, diz Gustavo Loyola, presidente do Banco Central de 1995 a 1997. Em 1º de julho, os preços em cruzeiros deixaram de existir, os valores em URV foram convertidos para reais e o real, por fim, se tornou a nova e única moeda em circulação. Com a moeda velha, desaparecia também a hiperinflação intrínseca a ela e a toda a estrutura de vícios que representava.
Para que a nova configuração desse certo, um participante teve papel essencial: o câmbio. Originalmente, optou-se pelo câmbio fixo, já que ele permitia um melhor controle da inflação ao equiparar o valor do dólar ao do real, tornando a moeda brasileira mais estável e forte — ainda que artificialmente. No entanto, quando havia fuga de capitais do país, o Banco Central era forçado a vender dólares no mercado para compensar o que estava saindo e manter a taxa de câmbio na paridade fixada. É aí que residia o problema: a medida de paridade fixa esgotou as reservas internacionais e obrigou o país a recorrer a um financiamento externo, junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI).
Nesse ponto, o Brasil flertava com a recessão. “O FMI ficava nos fiscalizando, dizendo o que o Brasil poderia fazer ou não”, afirma Henrique Meirelles, presidente do Banco Central durante os dois primeiros governos de Luiz Inácio Lula da Silva, de 2003 a 2010. “Eu tive a satisfação de assinar o cheque quitando a nossa dívida com o FMI. A reserva permitiu que o Brasil se estabilizasse, enquanto as crises posteriores foram internas e fiscais”.
O combate à hiperinflação foi a coroação do Plano Real, mas diversas outras reformas eram necessárias para permitir o controle de preços. Por isso, um conjunto amplo de propostas, empacotado em 63 emendas à Constituição, foi enviado pelo governo ao Congresso — uma tentativa frustrada, já que quase nada foi aprovado. “A ideia era transformar a Constituição, que era social e estatista, em um texto social-liberal, mas não passou”, recorda Edmar Bacha. “Esse é o copo meio vazio do nosso trabalho, com reformas que discutimos até hoje e poderiam ter sido feitas lá atrás.” Bacha, Franco e Malan lançaram neste mês o livro 30 Anos do Real — Crônicas no Calor do Momento, pelo aniversário do plano e da moeda.
Antecessor de Meirelles, Armínio Fraga assumiu o comando do BC na chegada do segundo governo de Fernando Henrique, convencido da necessidade de replicar modelos praticados em outros lugares do mundo. Por isso, instituiu, em janeiro de 1999, a mudança do câmbio fixo para o flutuante dentro do chamado tripé macroeconômico. Além do novo regime cambial, o tripé estabeleceu metas de inflação e metas de superávit primário, ou seja, o resultado positivo na balança entre receitas e despesas do governo. “O trabalho de transição foi o maior desafio, porque as expectativas de inflação na época oscilavam entre 20% e 50%”, afirma Fraga. “Nosso receio era de que, se a inflação de fato acabasse nesse nível, a indexação voltaria, e estaríamos na estaca zero”.
Da Revista Veja